O bode está na sala, e ninguém sabe o
que fazer com ele. No caso, a sala é o Plenário n. 9 do Anexo II do
prédio da Câmara dos Deputados, e o “bode” é o Pastor Marco Feliciano
(PSC-SP), eleito no último dia 11 de março presidente da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias. Poderia se tratar apenas de mais um evento
corriqueiro no Congresso brasileiro, no qual parlamentares de passado
duvidoso, encalacrados com empreiteiras, lobistas, contraventores, etc.,
sobem a uma posição de destaque e acabam tendo pedaços pouco honrosos
do currículo trazidos à tona. Mas Marco Feliciano conseguiu se destacar
como um dos maiores – e mais preocupantes – problemas surgidos no seio
do parlamento brasileiro.
A loquacidade de Feliciano em falar
“barbaridades” é de fazer inveja até a loquazes experientes no assunto,
como o também deputado Bolsonaro. Vejamos apenas os exemplos mais
famosos. Sobre negros (ou africanos, se quisermos dar o benefício da
dúvida): “Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso
é fato. O motivo da maldição é a polemica (sic). Não sejam
irresponsáveis twitters, rss [risada]. A maldição que Noé lança
sobre seu neto, canaã, respinga sobre continente africano, daí a fome,
pestes, doenças, guerras étnicas!” Sobre gays: “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, à rejeição. Amamos os homossexuais, mas abominamos suas práticas promíscuas”. Sobre mulheres com plenos direitos civis: “Quando
você estimula uma mulher a ter os mesmos direitos do homem, ela
querendo trabalhar, a sua parcela como mãe começa a ficar anulada, e,
para que ela não seja mãe, só há uma maneira que se conhece: ou ela não
se casa, ou mantém um casamento, um relacionamento com uma pessoa do
mesmo sexo, e que vão gozar dos prazeres de uma união e não vão ter
filhos. Eu vejo de uma maneira sutil atingir a família; quando você
estimula as pessoas a liberarem os seus instintos e conviverem com
pessoas do mesmo sexo, você destrói a família, cria-se uma sociedade
onde só tem homossexuais, você vê que essa sociedade tende a desaparecer
porque ela não gera filhos.”
Racismo, homofobia, misoginia, eis os
discursos preferidos de Marco Antônio Feliciano. O novo presidente da
Comissão de Direitos Humanos é um porta-voz do que no Direito se
convencionou chamar “discurso do ódio”, ou hate speech, nos
países anglófonos. Discursos do ódio são manifestações insultuosas,
intimidadoras, difamadoras, humilhantes, as quais tem como alvo
determinados segmentos da sociedade considerados “minorias”, por
diferirem do “grupo dominante” seja por causa da cor da pele, do sexo,
da opção sexual, da nacionalidade, da religião, etc. Os três tipos de
preconceito vocalizados por Feliciano e acima reproduzidos são
pacificamente considerados tipos de discurso do ódio, tanto na doutrina
como na jurisprudência internacionais – vide as decisões da Corte
Europeia de Direitos Humanos sobre o assunto[1].
Se por um lado a identificação do discurso do ódio é razoavelmente fácil, por outro o que fazer com ela é outro assunto. O hate speech não necessariamente é acompanhado por atos discriminatórios,
ou ações violentas. Por isso, uma forte corrente doutrinária, que tem
nos EUA seu reduto mais resistente e influente, defende que o hate speech é um tipo de discurso protegido pela liberdade de expressão, por se tratar da mera expressão de uma ideia
– odiosa, sem dúvida, mas que deve ser preservada em nome dos valores
maiores que norteiam um regime democrático. Para combatê-la, o livre
debate é a única arma possível, não sendo admissível a intervenção
estatal a menos que haja um “perigo claro e iminente” de que, a partir
do proferimento do discurso, uma violência física seja cometida. Na
ausência desse “perigo direto”, trata-se de uma mera ideia, a ser
vencida por outras ideias.
Contra essa corrente “libertária”, se
levantou uma corrente “ativista”, que predomina na Europa e foi adotada
no Brasil pelo STF no julgamento do HC 82.424/RS, e que defende o
banimento do discurso do ódio como violador de princípios igualmente
caros à ordem democrática, como a igualdade e a dignidade humana, cuja
mitigação é considerada mais danosa do que a restrição da liberdade de
expressão.
Vamos nos ater a apenas um aspecto desta
polêmica, o qual exploramos em monografia de final de curso na PUC/RJ: o
papel da linguagem no discurso do ódio. Ao mesmo tempo central, por se
tratar de um discurso, a linguagem em si raramente é levada em conta no
debate acerca do hate speech. Virando nossas atenções muito
rapidamente ao texto constitucional, à lei em si, deixamos de questionar
a própria noção de linguagem que vem balizando o debate desde o início.
Uma leitura atenta dos autores que tratam do assunto revela que a
linguagem se apresenta de forma mecânica, instrumental. O discurso é uma
mera representação de uma ideologia intolerante, a qual
concentra todas as atenções, transformando a linguagem no ponto cego do
discurso: ela está lá, mas ninguém a vê[2].
Ocorre que tal concepção
“essencialista”, descritiva, platônica mesmo, da linguagem, que separa
de maneira absoluta “palavra” e “objeto”, muito forte no campo do
Direito, como atesta Carlos Santiago Nino[3], já foi duramente questionada no campo da filosofia há pelo menos 50 anos, com o trabalho de J. L. Austin (1911-1960). Em How to do things with words (no Brasil, Quando dizer é fazer), Austin chegou à conclusão de que a linguagem não é meramente descritiva, e sim performativa – ela é em si uma ação, que, como toda conduta, depende de certos fatores para ser eficaz, ou feliz,
as quais o espaço é curto para detalhar, mas que podemos exemplificar
com o casamento. Quando falamos para o padre “Aceito me casar com esta
mulher”, não estamos descrevendo o ato, estamos perfazendo tal ato, estamos nos casando. Mas tal ato será infeliz, ineficaz, se a cerimônia for presidida por um médico, e não por um padre. O ato de fala,
como Austin o chama, não significa que as palavras são mágicas e que
atuam sobre a realidade apenas pelo simples proferimento. O contexto
influi, e deve ser levado em conta quando analisamos o discurso do
ódio: não se trata de uma ideia solta que o locutor captura no ar e
reproduz. É uma conduta como todas as outras, submetida a certas
condições para obter os efeitos pretendidos, condições estas que dizem
respeito não à sua existência, mas à sua eficácia/felicidade. Diante de um ato de fala, a questão da busca da verdade – tão cara aos defensores do livre debate como única solução para o hate speech
– perde importância, pois o binômio verdadeiro-falso também se submete
ao contexto, deixando de ser uma noção intrínseca às palavras. Por
exemplo, é verdadeira a frase: “a Venezuela é uma ditadura”? Para um
grupo, ela será verdadeira por completo; para outros, falsa por
completo; para terceiros, verdadeira ou falsa em parte. São as especificidades do contexto onde o discurso está imerso que determinarão sua veracidade ou falsidade.
Se, por um lado, Austin nos mostra que o discurso nunca é mero espelho de ideias etéreas e inalcançáveis, mas sim condutas socialmente moldadas e com um objetivo em vista – serem eficazes, ou felizes -, a filósofa americana Judith Butler, na obra Excitable speech, vai além: a linguagem opressora do discurso do ódio não é mera representação de uma ideia odiosa; ela é em si mesma uma conduta violenta,
que visa submeter o outro, desconstruindo sua própria condição de
sujeito, arrancando-o do seu contexto e colocando-o em outro onde paira a
ameaça de uma violência real a ser cometida – uma verdadeira ameaça,
por certo. A linguagem, portanto, tem sua capacidade própria de ferir,
ao interpelar (no sentido althusseriano do termo, com nuances) o
indivíduo e submetê-lo ao poder do Outro, que o reintroduz perante a
sociedade de outra forma – neste caso, uma forma humilhada e
inferiorizada.
É comum o uso do seguinte exemplo para
se iniciar um debate sobre discurso do ódio: “Um homem sobe num banco no
meio da Cinelândia, e começa a berrar que negros são inferiores,
mulheres são vadias, homossexuais são aberrações da natureza, etc.
Apenas isso, não há agressões, nem incitações. É válido puni-lo?” Ocorre
que tal problematização é simplória e enganosa, por vários motivos.
Separar “ideia” de “ação” significa negar à linguagem uma postura ativa,
capaz de moldar nossa realidade, e, por conseguinte, negar-lhe a
capacidade de ser violenta por si só. Tal abordagem também peca pelo
fato de “abstrair” uma questão que depende fortemente do contexto
imediato, das circunstâncias específicas do caso concreto, para ser
melhor entendido.
O caso do Pastor Feliciano é exemplar.
Pouco importa que ele seja apenas um falador, e que nunca tenha agredido
fisicamente, ou estimulado diretamente alguém a agredir, algum negro,
gay ou mulher. Seu discurso extremado já é uma conduta comparável à
ameaça. É um ato praticado por um sujeito específico – um pastor de uma
igreja evangélica, usuário de redes sociais de amplo alcance, deputado
federal, e agora presidente da Comissão de Direitos Humanos, usando de
todo o aparato da Câmara para fazer ecoar sua voz. É um ato que não está
solto no vento; tem um tipo de destinatário que pretende humilhar,
submeter, amedrontar, bem como aquele que quer cativar – o moralista, o
fundamentalista, o eleitor em potencial que compartilha de sua aversão
aos negros, aos gays e às mulheres independentes, mas que não se sente à
vontade de se expressar publicamente (o famoso comentarista anônimo da
internet). É um ato que possui uma violência linguística toda própria,
que fica evidente quando se usa termos historicamente nocivos e
negativos para se falar do homossexualismo (“podridão”) e dos negros e
descendentes de africanos em geral (“amaldiçoados”). Quando atrela a
igualdade de direitos feminina ao homossexualismo, Feliciano também
estende a “podridão” a este grupo.
Diante do discurso do ódio, o livre
debate tem pouca força, por si só. E isso por duas razões principais. A
primeira é que o livre debate pressupõe respeito mútuo e equanimidade,
coisa que não existe quando uma das partes vê a outra como inferior,
podre, corrupta, amaldiçoada. A segunda é que é uma ilusão acreditar
justamente no poder sobrehumano da “verdade”, cuja luz afastará as
trevas do pensamento medieval. Aqueles que comentam na internet com
caixa alta, aqueles que curtem os posts de Feliciano no Facebook
associando igualdade de direitos à destruição da família e dos bons
costumes, aqueles que compartilham do fundamentalismo vocalizado pelo
deputado e tantos outros não vão se comover com o melhor dos argumentos
“racionais” que lhes derem. A verdade no contexto fundamentalista é a do
fundamentalista. Não importa que você faça uma “interpretação
histórico-sociológica” avançadíssima da Bíblia, demonstrando por A + B
que Feliciano está errado em tudo; o apaixonado preconceituoso não
mudará por isso. A verdade, ou o que quer que lhe apresentem com esse
nome, é apenas um contra-discurso, uma ação contrária, que pode ou não
ser eficaz. Quando Feliciano fala que chegou na comissão para espantar
Satanás, e depois esclarece que se referia “aos seus inimigos
políticos”, confiar apenas no livre debate exige uma dose cavalar de
ingenuidade.
Diante desse fato, é patético ver
jornalistas do calibre de Elio Gaspari gastarem mais tempo criticando os
cidadãos que vão protestar contra o pastor na Câmara dos Deputados, do
que a própria eleição de Feliciano, a qual Gaspari se limita a chamar
de “contrassenso”[4]. É ver nos protestos dos jovens uma violência maior, ou mais criticável, do que o discurso do ódio de Marco Feliciano[5]. É negar à linguagem o poder de ferir, humilhar, ameaçar – algo que, vindo de um jornalista, é surpreendente.
A eleição de Feliciano para presidir a
Comissão que trata de medidas de proteção a minorias que o próprio
Feliciano despreza não é um mero contrassenso. É um ato tão pensado
quanto seus discursos racistas, homofóbicos e misóginos. É um projeto de
poder de cunho fundamentalista, interessado cada vez mais em obter
espaços não apenas na sociedade civil, mas dentro do próprio Estado, se
aproveitando da falência do sistema representativo político tradicional e
do modelo de governabilidade à brasileira. Feliciano não é um teólogo
medieval perdido no século XXI, pelo contrário: é um político do século
XXI, porta-voz de um projeto político em ascensão, de cunho excludente e
fundamentalista, que usa o discurso do ódio como ponta de lança. Não é
uma ideia solta no vento. É uma conduta planejada, e que busca sua
concretude. Contra ela, não basta trazer teólogos “progressistas”,
geneticistas, portadores da “verdade racional” e afins. A luta é
política. E – por que não? – jurídica.
Reinaldo Cintra é advogado e colaborador do ERA.
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