terça-feira, 3 de novembro de 2015

Neco Martins, o violeiro de São Gonçalo

02:07 · 05.11.2002
A Biblioteca do Cordel, da Editora Hedra (SP) lança, com apoio da Fundação Waldemar Alcântara, mais um volume sobre autor cearense: Manoel de Oliveira Martins, o Neco Martins

Nascido em Sítios Novos ( Caucaia), em 1865, filho de fazendeiro, casou com uma professora, dona Filomena Brígido, e se mudou para São Gonçalo do Amarante, do qual é uma espécie de fundador, juntamente com seu compadre José Procópio Alcântara.

A região era ocupada desde o século XVIII, quando foi construída a igreja do Siupé e o clã dos Praibas passou a dominar a área. Neco, ajudou a construir a matriz do povoado, em 1898, do qual ainda hoje resta uma parede original, depois de tantas reformas, e seu sobrado, misto de casa e armazém.

Violeiro que era, fez do padroeiro São Gonçalo, o santo que, na tradição portuguesa, é um monge beneditino que viveu no século XIII, e que no Brasil ganhou nova representação iconográfica com um jeito de trovador, a viola, e a lenda de que tocava para converter as prostitutas que, encantadas com sua beleza, dançavam até cansar e se convertiam, de onde veio a dança de São Gonçalo que, até o ano passado, mestre Joaquim, com sua rabeca, comandava na ladeira do Horto, em Juazeiro do Norte.

Rico e poderoso

Neco fez fortuna com o algodão, quando aumentaram as exportações e o produto ganhou importância no mercado europeu, nas últimas décadas do século XIX.. Comprava o algodão da região que era beneficiado na usina de seu amigo Alcântara. Seu armazém era uma referência e como era dono das terras autorizava que outros se fixassem nela, desde que leais a ele. Era um coronel à moda antiga, um homem alto, que falava aos sopapos, de paz, desde que não mexessem com ele, e padrinho de muita gente.

A viola era uma paixão desde adolescente e o elitismo da professora não foi capaz de inibi-lo. Foi um dos grandes do seu tempo. Felizmente, parte de sua produção oral foi registrada pelos folcloristas e por pessoas da família que guardaram fragmentos valiosos de suas pelejas.

A mais famosa de todas foi a que estabeleceu com a cantadora Chica Barrosa, uma negra paraibana, faceira e valente, morta em um samba, em 1916. Neco pelejou com ela uma noite inteira em sua fazenda do Siupé, isso em 1910. A desculpa para a mulher era de que iria vender umas cabeças de gado. Lá se reunia o povo do lugar, vaqueiros, agricultores, pescadores ( ficava próximo à Taíba), a gentalha, com direito a muita bebida, jogos e uma liberdade que o coronel precisava para se igualar aos demais. Alguns falam que ele teria agredido Barrosa. A versão mais difundida diz que eles de despediram de acordo com os códigos da cortesia sertaneja.

Liderança política, Neco teria se envolvido na morte do coronel Correia, de Caucaia, morto numa emboscada junto às pontes que separavam a então Soure da capital, de onde ele vinha a cavalo, com um neto que fugiu para pedir socorro.

A história, nunca esclarecida, envolvia a queda da oligarquia Acioli ( 1911), de quem Correia era partidário. O certo é que ele vagou um tempo, clandestino, apagando marcas, se arranchando nas casas dos seus compadres, até se apresentar em Caucaia, e obter autorização para voltar para São Gonçalo.

O importante de Neco foi a voz que ainda hoje ecoa e os relatos dizem da qualidade de sua performence, apesar de viver em um lugar que não fazia parte do circuito oficial das cantorias.

Ele mandava buscar os contendores, os contratava e não admitia receber dinheiro. Todo o apurado ia para o rival na palavra cantada.

O livro traz um cordel de sua autoria e pelejas com o Cego Sales, de Itapipoca, a cantiga de Neco Martins, recolhida por Rodrigues de Carvalho, em 1903, e o Marco de Divisão, um gênero de construção poética utópica, metáfora de um mundo hiperbólico, pelo qual passaram os maiores nomes do repente.

A formação

De poucas letras, Neco se inscreveu na história da cantoria de forma atípica, como alguém das elites ( econômica e política) que dominou um código que a partir de um certo instante passou a ser das camadas subalternas.

Seu canto deve trazer influências das canções de ninar de suas amas de leite, da fazenda em Sítios Novos, onde nasceu na véspera da festa de Santa Luzia, dia de colocar seis pedras de sal no peitoril da janela para saber se vai chover no dia seguinte.

Vale ressaltar que o Ceará viveu um longo período de mais de quarenta anos sem secas no século XIX, o que fortalecia os negócios com agricultura e pastoreio.

Neco também deve ter ouvido o torém, dança ritual dos Tremembé, donos de parte do litoral oeste do Ceará, ter brincado de Moura Torta, Dona Sancha, e outras heranças ibéricas, e na biblioteca de dona Filomena é provável que estivessem livros de Carlos Magno, os românticos brasileiros e, quem sabe, um Juvenal Galeno, que lançou suas Lendas e Canções Populares no mesmo ano do nascimento do menino Manoel.

Esse sincretismo foi o caldo cultural que gerou Neco, amplificou sua voz e fez dele um intérprete da cantoria em seus tempos primordiais, o que hoje se chama pé de parede.

Herança

Dona Filomena conseguiu que Neco deixasse de cantar, mas, tarde demais, ele já tinha deixado sua marca, e por isso ainda hoje ele é lembrado. A decisão foi tão drástica que ninguém da família sabe onde foi parar sua viola.

Um de seus filhos, Eretides, herdou o dom do pai. Participava de cantorias, compôs poemas que falavam de bois e patrocinou um festival de violeiros em sua fazenda, objeto de matéria da revista O Cruzeiro, dos Diários Associados.

Eleito deputado estadual, em 1947, Eretides utilizava a cantoria em suas campanhas políticas. Foi candidato a prefeito de Fortaleza, em 1950, derrotado pelo radialista Paulo Cabral de Araújo, não conseguiu se eleger nas eleições de 1954 e 1958.

Uma de suas preocupações foi restabelecer o nome do município, que havia sido trocado para Anacetaba, quando da redivisão territorial promovida no período getulista.

Com a morte de dona Filomena, ele ficou macambúzio, envelhecia e não era mais o coronel de antes. Todos os dias ia dava uma volta pela cidade e diziam que ia ao cemitério rever a amada e companheira de tantos anos e tantos embates.

Morreu, prosaicamente, de uma infecção intestinal, em 1940, mesmo ano em que São Gonçalo passava a ser definitivamente município ( antes a sede se revezava com Paracuru), morte pouco heróica para um homem que ficou famoso pelo toque da viola, mas também pela valentia e pelo arrojo de fazer de São Gonçalo a sua cidade em louvor ao santo violeiro. 
 
 Fonte Diário do Nordeste em seu Caderno 3

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