Benedito e Bento, filósofos brasileiros
Gadafi não controla mais que 15% da Líbia. Morre Moacir Scliar, aos 73 anos, e é homenageado pela presidente Dilma. Morre Benedito Nunes. É assim que talvez eu me lembre desse dia, no futuro. Em meio à Primavera Árabe e no dia em que a literatura nacional perde a boa pena de Scliar, desaparece também um bom filósofo brasileiro, aquele com um eterno rosto de malandro. Um rosto bem diferente dos de tantos outros filósofos, não raro marcados por vincos do sofrimento auto-imposto.
Benedito Nunes, filósofo brasileiro, esteve na mesa e na estante de muitos outros filósofos brasileiros e, enfim, de todo professor de filosofia respeitável. Caso não pelos seus diversos livros sobre Heidegger ou sobre arte, ao menos por um que, durante bom tempo, ficou solitário no que tínhamos de introdutório para os cursos de filosofia contemporânea, o pequeno mas produtivo volume de título A Filosofia Contemporânea (1991). Aliás, esse seu livrinho disse muito do professor e escritor paraense, pois, sendo de leitura sem muitas voltas, imitou o próprio humor de Benedito, também rápido no gatilho. Um humor, aliás, que combinava muito com o de outro filósofo brasileiro de sua geração, também já falecido, Bento Prado Jr.
Tive a oportunidade de estar em conversas com ambos juntos, numa mesma roda, várias vezes. Numa delas, Bento contava para nós dois, Benedito e eu, os motivos pelos quais estava contrariado. Ele dizia: “vim a uma ANPOF e não bebi, e não me deixaram falar, dado que moda agora é a filosofia meio que científica, e aí eu fiquei triste e vim noutra ANPOF e bebi, mas aí não só me deixaram falar como me fizeram falar. Eu falei bêbado, é claro. E então ficaram bravos comigo porque falei bêbado! Bem, na próxima ANPOF não saberei como agir – mas beberei”. Benedito riu e devolveu rápido para Bento: “engane-os todos, na próxima você diz que não vem, venha e não fale senão no lugar que escutam os que sabem escutar, no bar – vamos para lá urgente” E fomos!
Assim era a filosofia. Os cargos estatais eram desprezados por essa geração. Aliás, a própria reunião da ANPOF era uma reunião de amigos, não uma reunião de “produtividade”. E os filósofos liam uns aos outros. Essa geração – da qual eu peguei parte da atuação – viveu realmente para a filosofia, se deliciando em criar um clima de debates de pares na literatura nacional. Mas, após a filosofia ter se tornado “produtiva”, as teses dominaram a escrita e os leitores de colegas desapareceram. Bento foi um dos poucos que continuou lendo os colegas. Foi assim que Giannotti ganhou um crítico que, talvez, ele próprio não tenha sabido tirar proveito. Ele, Bento, sempre que podia, fazia lá a resenha de um livro novo de um colega, entre estes, Giannotti. Mas, essa prática foi desaparecendo mesmo entre os mais velhos. A idéia que vingou foi a mesquinhez: “não falo do colega nada, para não abrir espaço para ele”. Espaço onde? Na imprensa? Na briguinha departamental? Mais ou menos isso. E assim morreu a filosofia. Iniciou-se o que eu tenho chamado de o silêncio de todos contra todos. Isso refletiu nos grupos de discussão nas universidades. Cada grupo virou o grupo do orientador e seus orientandos, e não o grupo de filósofos de todo tipo e idade, como havia ocorrido com a geração de Bento Prado e de Benedito Nunes.
Mas, o fato é que Nunes e Bento tinham uma saudável característica que os diferenciava também de outros mais ou menos próximos deles, ou seja, a ausência de uma formação ligada à igreja ou ao marxismo ou mesmo ao cientificismo, as três grandes linhas de formação da filosofia brasileira de cunho acadêmico. Tendo ficado distantes disso, eles sempre puderam contar piadas desligadas do policiamento do “politicamente correto” e, ao mesmo tempo, serem capazes de promover o mais produtivo politicamente correto que a filosofia jamais conheceu em nossa academia. Eles eram professores que adoravam ver os alunos vencerem cada etapa. Tinham o prazer do convívio com a filosofia. Pensavam grandes teses da metafísica, mas articuladas aos problemas comezinhos, da vida cotidiana. Por isso, ambos, tinham um gosto especial por certo tipo de antropologia inteligente. E quando se tratava de aprender, não titubeavam em ouvir colegas, tentando reformular pontos de vista.
Assim, por conta dessa disposição, Bento podia se acomodar em São Carlos e Benedito podia viver longe do Rio e de São Paulo, na capital paraense. Eles gostavam do grande centro. Mas, sem Internet, eles estavam há muito conectados pelo pensamento do que havia de mais contemporâneo. Como? Ora, tinham a curiosidade do filósofo e a antena ligada para o que havia de bom “lá fora”. Sabiam rir, por isso tinham curiosidade. Não faziam da vida de filósofo a tarefa grotesca de ficar de banca em banca, de concurso em concurso, reprovando aqui e ali os jovens, para limitar as escolhas de um departamento ou outro de filosofia. Viviam soltos. E soltos escreviam. Escreviam quando queriam. Esperavam ter leitores, não alunos somente. Escreviam para algum leitor, não para o CNPq.
Tanto quanto as teses mais centrais que defenderam em filosofia, o que valeu foi que viveram como filósofos. Infelizmente, como já foi o caso de Bento, logo Benedito terá suas homenagens póstumas não por textos e obras como eles gostavam, mas por algum colóquio de filosofia em alguma universidade. Algum colóquio “para fazer currículo” de professores, que talvez não discuta nenhum dos textos mais ácidos que fizeram. Então, eles saberão que morreram. Sorte deles que não poderão saber tudo sobre isso, uma vez que a morte embaça um pouco a percepção do morto.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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